Leia a crônica de Luis Fernando Verissimo e descubra como ele narra com criatividade uma história que pode ter sido vivida por ele e por muitos de sua geração, usando canções da Bossa Nova.
O apagar da velha chama
Eu, você, nós dois, um cantinho, um violão... Da janela, mesmo em Porto Alegre, via-se o Corcovado, o Redentor (que lindo!) e um barquinho a deslizar no macio azul do mar. Tinha-se, geralmente, de vinte anos para menos quando, em 1958, chegou a Elizete com abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim e João Gilberto com o amor, o sorriso, a flor e aquela batida diferente, mas que era bossa-nova e era muito natural, mesmo que você não pudesse acompanhar e ficasse numa nota só, porque no peito dos desafinados também batia um coração, lembra? Na vida, uma nova canção, um doce balanço. Era carioca, era carioca, certo, mas a juventude que aquela brisa trazia também trazia pra cá e daqui se via a mesma luz, o mesmo céu, o mesmo mar, milhões de festas ao luar, e sempre se podia pegar um Electra e mandar descer no Beco das Garrafas, olha que coisa mais linda. Queríamos a vida sempre assim, si, dó, ré, mi, fá, sol, muito sol, e lá. Mas era preciso ficar e trabalhar, envelhecer, acabar com esse negócio de Rio, céu tão azul, ilhas do sul, muita calma pra pensar e ter tempo pra sonhar, onde já se viu? Até um dia, até talvez, até quem sabe. O amor, o sorriso e a flor se transformavam depressa demais. Quem no coração abrigou a tristeza de ver tudo isso se perder, para não falar nos seus vinte anos, nos seus desenganos e no seu violão, nem pode dizer ó brisa fica, porque nem mais se entende, nem mais pretende seguir fingindo e seguir seguindo. A realidade é que sem ela não há paz, não há beleza, é só a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai. E dê-lhe rock.
VERISSIMO, Luis Fernando. O apagar da velha chama.
In: Peças íntimas. Porto Alegre: L&PM Editores, 1990.
GLOSSÁRIO
Corcovado, o Redentor: menção ao Morro do Corcovado, no Rio de Janeiro, e à estátua do Cristo Redentor, que se encontra no pico do morro.
Batida: ritmo musical, cadência.
Electra: provável menção à Electra International Brazil, um dos fundos de investimento da concessionária Supervia, operadora da rede de trens urbanos do Rio de Janeiro. A expressão “sempre se podia pegar um Electra e mandar descer no Beco das Garrafas” deve significar pegar um trem e descer numa estação próxima ao beco.
Desengano: desilusão, falta de esperança.
Melancolia: estado de grande tristeza sem causa definida, desencanto geral; depressão. Às vezes está associada à saudade.
Intertextualidade (relações entre textos) por meio de paródia
A paródia é um dos tipos de relação que podemos estabelecer entre textos. Para provocá-la, o autor deixa em seu texto marcas que nos ajudam a lembrar de outro texto e, ao mesmo tempo, promove uma atualização de significados inesperados, quase sempre com efeitos de humor e crítica.
QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO
1. Que canções você percebe que foram parodiadas no texto?
2. Que idade tinha o narrador, possivelmente, quando viveu a Bossa Nova? Que passagem do texto permite chegar a essa conclusão?
3. O narrador fala de experiências individuais ou coletivas? Justifique indicando o uso de pronomes e de verbos.
4. A perspectiva com que o narrador olha a vida no final da crônica também é a dessa idade? Que passagens você gostaria de indicar para justificar sua resposta?
5. O que chama sua atenção na paragrafação? E quanto ao emprego de vírgulas e pontos, qual desses sinais de pontuação é mais recorrente?
6. Você acha que essas escolhas foram coerentes para a sugestão de um ritmo para o texto? Por quê?
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