A orelha de Van Gogh - Interpretação de conto e autorretrato - Trabalho interdisciplinar e atividade complementar 8º e 9º anos


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Nesta atividade, você lerá o conto “A orelha de Van Gogh” que faz parte do livro Histórias para (quase) todos os gostos, ele foi classificado por Moacyr Scliar como “uma história para quem gosta de mistérios artísticos”. Com uma narrativa irônica e ao mesmo tempo sentimental, o autor expõe, em um texto ficcional, como uma ideia mórbida acabou movimentando o cotidiano de uma família comum. Com a esperança de ter a sua dívida perdoada, o pai do narrador decide oferecer uma falsa orelha do pintor Van Gogh a um credor. O desfecho dessa mirabolante narrativa remete o leitor à reflexão sobre um episódio macabro da História da Arte (Van Gogh de fato mutilou a própria orelha), de maneira que o labirinto no qual o narrador se perde aos 12 anos convida o leitor a também se perder nele.

A orelha de Van Gogh

Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.
Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação... Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam dele, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável.
Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir […]. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por Van Gogh. Sua casa estava cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo menos uma meia dúzia de vezes ao filme de Kirk Douglas sobre a trágica vida do artista.
Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre Van Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu, triunfante:
— Achei!
Levou-me para um canto — eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice — e sussurrou, os olhos brilhando:
— A orelha de Van Gogh. A orelha nos salvará.
O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.
Depois me explicou. O caso era que o Van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, amante da mulher por quem Van Gogh se apaixonara, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.
— Que dizes?


Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilusões. Contudo, o fato de a ideia ser absurda não me parecia o maior problema; afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa deveria ser tentada. A questão, contudo, era outra:
— E a orelha?
— A orelha? — olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido. Sim, eu disse, a orelha do Van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.
No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de Van Gogh, anunciou, triunfante.
E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh – orelha.
À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela janela.
— Falta de respeito!
Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito, falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:
— Era a direita ou a esquerda?
— O quê? — perguntei, sem entender.
— A orelha que o Van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?
— Não sei — eu disse, já irritado com aquela história. — Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber.
— Mas não sei — disse ele, desconsolado. — Confesso que não sei.
Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:
— E a do vidro? — perguntei. — Era a direita ou a esquerda?
Mirou-me, aparvalhado.
— Sabe que não sei? — murmurou numa voz fraca, rouca. — Não sei.
E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha — qualquer orelha, seja ela de Van Gogh ou não — verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Nesse labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.

Moacyr Scliar. A orelha de Van Gogh. Em: Histórias para (quase) todos os gostos. 5. ed. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 57-60.

GLOSSÁRIO

estabelecimento de secos e molhados: tipo de armazém onde se vendem alimentos sólidos e líquidos.

formol: solução utilizada para conservar o corpo e partes do corpo de cadáveres.

Kirk Douglas: ator estadunidense nascido em 1916. Ele interpretou Van Gogh no filme Sede de viver, sobre a vida do pintor, lançado em 1956.

necrotério: local onde os cadáveres ficam antes da identificação ou da autópsia.

vender fiado: vender a crédito, com a confiança de que o comprador vai pagar a dívida.

1. O autor é quem cria e escreve as narrativas. O narrador é a voz adotada pelo autor para contar os acontecimentos em uma história. O autor é uma pessoa real, enquanto o narrador existe apenas na história contada, podendo ou não participar dos acontecimentos narrados. Considerando essas informações, quem é o autor e o narrador do conto  “A orelha de Van Gogh”?

2. Os tipos de narrador são o narrador personagem (em primeira pessoa), que participa da história; o narrador observador (em terceira pessoa), que apenas narra o que vê; e o narrador onisciente (também em terceira pessoa), que tem total conhecimento de personagens e fatos. Qual é o tipo de narrador do texto conto lido?

3. Descreva algumas características das personagens: pai, mãe e credor. 

4. No trecho "Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação... Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência." o narrador demonstra se opor a duas formas de viver. Quais são elas? 

5. No gênero conto, o enredo se desenvolve em um único espaço ou em poucos espaços, e o tempo de duração da história é geralmente curto. Em que espaços se desenvolvem as ações narradas no conto “A orelha de Van Gogh” e em que período de tempo se deram essas ações?

6. O enredo tende a se organizar em torno de um único conflito, ou seja, de uma única oposição entre personagens ou forças. Esse conflito pode ocorrer, por exemplo, entre duas ou mais personagens, entre o protagonista e o antagonista, entre o protagonista e as forças externas, etc. No conto lido, há um conflito presente desde o primeiro parágrafo e é em torno dele que se desenvolve a narrativa. Qual é esse conflito?

7. O conflito desta narrativa é solucionado? Em caso afirmativo, quem o soluciona e de que forma? Comente. 

8. Releia o último parágrafo do conto.

E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha — qualquer orelha, seja ela de Van Gogh ou não — verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Nesse labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.

Em que época da vida do narrador se passa a história? Ela é contada no momento em que acontece ou em momento posterior aos acontecimentos?

9. Observe um autorretrato de Van Gogh, ele possui uma relação com o conto de Moacyr Scliar, explique por quê.

Vincent van Gogh. Autorretrato com a orelha cortada, 1889. Óleo sobre
tela, 60 cm 3 49 cm. Instituto de Arte Courtauld, Londres.

VINCENT VAN GOGH

O holandês Vincent van Gogh (1853-1890), hoje reconhecido por pintar algumas das mais importantes obras da história da arte, só obteve reconhecimento após sua morte. Durante a vida, vendeu poucos quadros e passou por dificuldades financeiras, além de ter enfrentado problemas de saúde mental.

O episódio relativo à orelha cortada apresentado no conto realmente aconteceu: durante sua estada na cidade francesa de Arles, em dezembro de 1888, Van Gogh se desentendeu com Paul Gauguin (1848-1903), também pintor, com quem dividia uma casa na cidade. Transtornado, Van Gogh cortou parte da orelha esquerda após a briga com Gauguin e a entregou a uma mulher que morava na cidade.

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