A gulosa disfarçada
Casara-se um homem exigente com certa mulher conhecida pelas grandes virtudes. Isso já faz muitos anos... E naqueles tempos, mulher virtuosa era justamente como aquela: honrada, prestimosa, boa dona de casa. Mas essa era ainda mais: uma excelente cozinheira.
Preparava pratos de dar água na boca. A todos regalava.
Na verdade, a todos não. Por incrível que possa parecer, era ela a única a não demonstrar apreço à própria arte.
O marido já se havia cansado de ouvir da mulher, fosse no almoço, na merenda, no jantar ou na ceia, com algumas variações, sempre o mesmo bordão que a levava a empurrar, com indiferença, o prato ainda intocado, para o outro lado da mesa.
- Desculpe-me a falta de apetite, marido, mas é que hoje amanheci mesmo indisposta.
Outras vezes a inapetência vinha da casa vizinha.
- Desculpe-me se estou hoje sem fome, marido, mas é que a notícia da doença da nossa comadre me tirou de vez o apetite.
O fato é que, apesar das dores de cabeça, da dor no estômago, da doença da comadre ou da morte da bezerra, a mulher estava cada dia mais corada, gorda e vendendo saúde.
O marido desconfiou. Com tantas prendas já comprovadas, estaria ela lhe escondendo algo que poria um fim à sorte de ter como esposa mulher tão virtuosa?
Resolveu investigar.
Simulou uma viagem urgente. O trabalho exigia. Arrumou rapidamente a mala, despediu-se da mulher, que o viu partir a passos largos e apressados.
Assim que ele desapareceu no horizonte, a mulher não perdeu tempo.
Respirando aliviada, mais que depressa preparou para o almoço grossas tapiocas de goma, fartamente regadas ao leite de coco. Com sofreguidão, devorou-as de uma só vez, sem notar a presença do marido, que retornara sem ser visto, e a vigiava atrás de um velho armário da cozinha.
Ainda insatisfeita, correu ao quintal, escolheu o mais graúdo dos frangos, que preparou ensopado em caldo grosso para o jantar. Comeu-o todo, lambendo os beiços e enxugando o caldo com fatias de pão.
Em seguida, veio a merenda e vieram os beijus, fininhos como papel. Nem farelas sobraram.
À ceia foi a vez das mandiocas, branquinhas, as mais enxutas, fazerem o regalo da mulher. Mastigava-as revirando os olhos de prazer.
A cena foi demais para o marido!
Descobrira finalmente a impostura. Sua mulher era uma gulosa disfarçada. Merecia ser desmascarada.
Determinado, saiu de mansinho do esconderijo e bateu à porta. Chovia forte naquele momento.
A porta abriu-se. Ao dar de cara com o marido, tamanho foi o susto que, por pouco, a mulher não caiu para trás.
Já ensaiava um sorriso para dissimular a surpresa, mas ... Qual o quê! Novo sobressalto! Notou-lhe as roupas inexplicavelmente secas.
Mal conseguindo disfarçar o embaraço, mais uma vez tentou contornar:
- Que bom você ter voltado tão cedo, marido ... Mas ... como chegou tão enxuto sob essa chuvarada?
Encarando firmemente a mulher, a resposta veio de imediato:
- Se a chuva fosse tão grossa como as tapiocas que você almoçou, eu estaria tão ensopado como o frango que você jantou. Mas, como a chuva era tão fina como os beijus que você merendou, eu estou tão enxuto como as mandiocas que você ceou.
E a gulosa, compreendendo que fora descoberta, não mais escondeu o apetite do marido.
E sabem o que mais? O marido a perdoou. Afinal, quem não tem um pecadinho? E ele também o tinha: era por demais exigente.
(Recontado por Célia Fagundes Rovai.)
VOCABULÁRIO
prestimosa: prestativa, cuidadosa.
regalava: proporcionava prazer.
apreço: estima, admiração.
bordão: expressão ou frase que um indivíduo repete viciosamente ao falar ou escrever.
morte da bezerra: fato sem importância.
prendas: predicados, qualidades, habilidades.
sofreguidão: maneira de quem bebe ou come apressadamente, com avidez, com voracidade.
impostura: fraude, engano, ardil, logro, mentira.
dissimular: fingir, disfarçar.
QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO
1. Quem são os personagens do texto?
2. Como você pode explicar o fato de não terem nome próprio?
3. Segundo o texto, quais eram as virtudes da mulher?
4. Nos primeiros parágrafos são declarados abertamente também os defeitos da mulher? Justifique.
5. Já no início do texto, quais indícios levam o leitor a suspeitar de que a mulher não tinha somente virtudes?
6. O que fez o marido desconfiar do fingimento da mulher?
7. Que atitude o marido toma com o objetivo de desmascarar a mulher?
8. Quais foram as refeições da mulher, presenciadas pelo marido?
9. O que ela comeu em cada uma delas?
10. Das alternativas abaixo, segundo o texto, quais as que poderiam explicar o comportamento dissimulado da mulher?
a) A gulodice ser reprovada pelas normas sociais.
b) Principalmente no passado, era feio a mulher ser gulosa.
c) A gulodice trazer prejuízo a saúde.
d) O marido exigir da mulher que comesse pouco.
11. O conto "A gulosa disfarçada" '" revela qual característica do comportamento humano?
a) A preocupação em manter as aparências.
b) A preocupação em manter a boa aparência física.
c) A preocupação pelo bem-estar do outro.
12. O que você achou do final do texto?